I
Com uma voz doce e hesitante, sabendo que poderia me magoar bem lá no fundo, meu pequeno garoto de, na época, 6 anos (isso foi há algumas semanas), declarou com todas as letras - e aos berros - que eu era a pior mamãe do mundo. Foi porque eu havia dito que ele teria que terminar de comer o café da manhã no carro, já que tinha enrolado demais para sair de casa naquela manhã.
Nunca ninguém pegou tão pesado comigo com tanta ternura.
Com certeza doeu mais nele do que em mim. Eu meio que amei. “Mamãe” carrega em si uma fé inabalável. A entrelinha dizia: “Mesmo sendo a pior do mundo, você ainda é minha única mamãe, e eu te amo com todo o meu ser, infelizmente. Eu confio tanto no seu amor que posso te declarar desprezo e seguir sendo amado incondicionalmente.” Foi isso o que eu ouvi, no fim das contas.
Não saberei reagir no dia em que eu perder um “ma” e sobrar para mim apenas o “mãe”.
Espero que esse rebaixamento pese na consciência dele. Ser a pior mãe do mundo já seria demais para mim.
II
Esses dias uma enxurrada de vídeos de médicos segurando uma seringa própria das anestesias peridurais invadiu meu Instagram. “Lembre-se disso no dia das mães.” dizem os reels piadistas. Eu achei graça e salvei alguns deles pra fazer um drama pros meus filhos, que tem pavor de agulhas, como toda criança que se preze.
É o dia das mães se aproximar e eu sentir aquela agulhada chegando lentamente na minha cervical, como quem diz “Ei você, nem adianta disfarçar, a mãe é tu merma, volta aqui que essa bola agora tá contigo." Ela vem com sotaque carioca de fábrica, só pra me intimidar mais.
Eu não gosto do dia das mães, me sinto pressionada como mãe e como filha. É como ser Jesus no Natal e ainda ter que comprar presente.
Nos Estados Unidos, ou pelo menos no Pacific Northwest, onde eu moro desde o ano passado, as mães tiram um tempo pra si, de preferência longe da família. Eu acho transgressor e um pouco rude. Sem julgamentos, adoro a ideia. Mas latino-americana que sou, sinto a ofensa como um coice no queixo. Um credo que delícia bandeira dois na culpa cristã.
O Dia das Mães, em maiúsculas pra trazer dignidade de feriado internacional, é uma data ingrata porém necessária. Tem quem não tenha mãe, ou que tenha mas não a suporte. Mas é sempre bom lembrar que “mãe” é e sempre será a instituição que move o mundo. E mesmo assim esqueceram da gente até mesmo no arremate da oração mais famosa do mundo. Em nome do pai, do filho, do Espírito Santo. Onde é que estava a mãe nessa hora?
Tomando peridural e orando pela saúde do filho que viria ao mundo.
III
Estou exausta de ver cartas Pokémon espalhadas pela casa inteira, em todos os cômodos. Um dia, já perdendo a linha, alertei “se essas cartas estiverem largadas pela casa quando eu voltar, vão todas pro lixo.” Lendo isso assim em uma seca sentença me sinto mal, mas realmente foi o que eu disse. Nino se ofendeu profundamente. Entrou em pânico e, já chorando, disse: Essas cartas são minha vida, elas são parte de mim. Se você fizer isso, vai estar me jogando fora também, sabia?
Esse “sabia?” me pega demais. Eu nunca sei, essa é a verdade.
É muito foda ser mãe porque eu entro em contradição o tempo todo. Nessa hora eu perdi tudo, quis sentar e chorar também. Abraça-lo e dizer “meu amorzinho, a mamãe falou bobagem, você é a cartinha Pokémon mais rara de todas, nada vai te acontecer, nem hoje nem nunca.”
Mas a verdade é que eu disse: Se elas são parte de você, então você precisa cuidar. Você não deixa uma orelha ou um dedinho do pé espalhados pela casa, né?
A inocência das crianças escancara toda a maldade que existe em nós, já corrompidos pelo jogo da manipulação adultocêntrica.
No fim, ele não recolheu as cartas, espalhou mais algumas por outros cômodos, como um cachorrinho que mija na sua cama quando você bota ele pra dormir no quintal, e eu não joguei coisa nenhuma no lixo.
Sou maldosa mas não sou um monstro.
IV
Em breve, serei mãe de uma adolescente. Tenho tentado me munir de informações para passar por isso da forma menos traumática possível, para nós duas. Essa neurose, é claro, tem me tirado a paz todos os dias, gradualmente. Afinal tenho síndrome de mãe-adolescente mesmo tendo parido aos 25 anos, e me pergunto como foi que o tempo passou tão rápido. Como foi que vivi tão pouco entre almoçar coxinha e guaraná na cantina do colégio Objetivo e comprar um sutiã para minha filha mais velha?
Na escola (escola Waldorf, devo ressaltar), a professora disse que, ainda este ano, começarão a falar sobre sexualidade. Aqui em casa, todos os dias surgem assuntos sobre crushes, sempre dos outros, nunca dela. Tentamos participar como ouvintes, interessados, sem julgar ou ser invasivos. Os hormônios começaram a dar as caras com grandes ataques de fúria, e a porta do quarto, de repente, se fechou. Eu tento todo dia uma tática nova de aproximação, mas me sinto errando em tudo. Passo sessões de terapia dizendo que não vou conseguir, que, no fim, ela vai me odiar, que não sou uma boa mãe, que não tenho paciência, que sou controladora, e me culpo todos os dias, me perguntando se estou sendo atenciosa o suficiente, dando autonomia o suficiente, ensinando consciência de classe o suficiente, apresentando boas referências culturais o suficiente, dando espaço para que ela descubra suas próprias referências o suficiente, ensinando cuidados pessoais o suficiente, levando ao médico o suficiente, checando a limpeza dos seus ouvidos o suficiente, incentivando o suficiente, elogiando o suficiente, sendo dura o suficiente, sendo mãe o suficiente.
Como toda boa sessão de terapia, saio sem respostas prontas.
Só que, às vezes, bate uma lucidez e vejo uma mãe universal que, por destino, traz em si esse mistério perturbador, que, aos olhos do filho, sempre será suficiente. E também sempre faltará em algo. Porque a mãe é tudo o que ele sabe, até que ele passa a saber mais do que ela pode lhe ensinar. Então, aquilo que já foi tudo deixa de ser suficiente, mas nunca deixa de já ter sido tudo. Essa é uma verdade que traz uma paz embrulhada em prêmio de consolação, ainda que arrase com a gente.
Em meio a essa divagação niilista, há o que se comemorar: entre ataques de nervos e (escassas) declarações de amor, para Catarina, eu também sou "mamãe". Ainda que a pior do mundo.
Breve nota desta autora: ignorei tudo o que o Substack me diz para começar um perfil aqui, não me apresentei, não expliquei nada e fiz menos do que minha obrigação, mas não ia querer esperar mais 365 dias para publicar esse texto que foi se desenvolvendo no meu útero na última semana e já estava no gargalo pra sair, com medo de já não ser mais a “mamãe” no ano que vem. Em breve mais inutilidades por aqui.
Adorei!
Ai que lindo!